Carcosa é uma cidade fictícia inventada pelo escritor Ambrose Pierce, em 1886, onde se passa o conto “Um Habitante de Carcosa”. Embora o autor não tenha revelado quase nenhum detalhe sobre a cidade, essa inspirou dezenas de outros escritores que vieram depois, em especial Robert W. Chambers.
Muitos consideram Ambrose Pierce um dos pais da chamada “Weird Fiction”, gênero de ficção especulativa que retrabalha clichês do Terror ou Sobrenatural para transformá-los em coisas… estranhas.
Estranha é a noite de pretas estrelas raiando
E luas estranhas rondando o céu
Mas o mais estranho ainda é
A extinta Carcosa.
Trecho traduzido de “A Canção de Cassilda” - O Rei de Amarelo - Robert W. Chambers (1895)
Meu primeiro contato com esse universo assombroso se deu através da série de ficção policial True Detective (2014). É por ela que vou começar a edição de hoje de universos sombrios.
obs: as edições serão enviadas quinzenalmente, aos domingos.
Trilha Sonora
A música tema de True Detective é sensacional, vou deixá-la aqui para você tocar enquanto lê:
Ficção Policial + Terror = não tem como dar errado
Aviso: essa seção contém spoilers de True Detective (apesar de a série ter sido lançada há quase dez anos)
True Detective começa parecendo que será apenas mais uma série de ficção policial corriqueira: empolgante, repleta de clichês, dois policiais parceiros que não gostam e crimes que parecem envolver um culto satanista.
Tudo isso já foi visto antes, mas o roteiro vai se desenvolvendo e percebe-se que existem questões filosóficas por trás das desavenças entre os protagonistas e esses possuem motivações interessantes para agirem do jeito que agem.
Alguns episódios adentro, os investigadores começam a suspeitar que os responsáveis pelos crimes pertencem à alta sociedade de Louisiana e acabam esbarrando numa seita que venera um tal de Rei de Amarelo. Os dogmas desse grupo são absolutamente repulsivos.
Nesse ponto da série, um clima de Terror se instaura e o ambiente rural do sul de Louisiana, que já fora apresentado como decadente e degenerado, toma contornos sombrios e abomináveis.
O Rei de Amarelo traz uma conexão direta com o livro de mesmo nome, de Robert W. Chambers, escrito em 1895, e considerado uma obra seminal da Weird Fiction.
No livro de Chambers, essa figura enigmática e sobrenatural advém da cidade de Carcosa. Na série, também não demora para que os detetives encontrem referências a esse lugar. Uma possível testemunha dos crimes, Sra. Dolores, se exalta ao ouvir o termo:
Cole Rust (detetive): — A senhora reconhece isso? — Mostra uma anotação com referências à Carcosa.
Sra. Dolores (testemunha): — Você conhece Carcosa? Ele… come o tempo. A túnica dele… é um vento com vozes invisíveis. Alegre-se! A Morte não é o fim, alegre-se! A morte não é o fim! CARCOSA!
Dolores não fazia parte de nenhuma das famílias ricas envolvidas na seita, mas prestou serviços domésticos para vários deles e acabou tendo contato com um dos cultos ao Rei de Amarelo.
O fato dela se exaltar com a lembrança de Carcosa demonstra a extensão da mácula, uma vez que não participava da seita diretamente. Mas como na obra de Chambers, basta um pequeno contato com qualquer coisa relacionada à Carcosa ou o Rei de Amarelo para que a pessoa seja cativada e enlouqueça.
A investigação leva os detetives a um embate final com Errol Childress, considerado pelo culto como um avatar do Rei de Amarelo. Eles o encontram numa mansão semiabandonada e com uma estranha estrutura de alvenaria no jardim dos fundos.
Essa parte da casa é chamada pelas pessoas que a frequentam como uma representação terrestre da extinta e alienígena cidade de Carcosa e, ao mesmo tempo, um portal para o lugar original. A única forma para atravessar o portal se daria através de seus rituais macabros, que envolviam sacrifícios humanos e outros atos repulsivos.
Os elementos de Terror nessa história me deixaram intrigado e fui pesquisar. Embora a série não cite diretamente Ambrose Pierce ou Robert W. Chambers, bastou uma breve busca no google para encontrar as histórias, que são de domínio público.
Achei que essas histórias do século XIX não me impressionariam, mas estava muito enganado.
Um Habitante de Carcosa - Ambrose Bierce (1886)
A primeira aparição de Carcosa se deu nessa pequena, mas marcante história. Para um texto tão antigo, a prosa é surpreendentemente direta e clara.
Robardin se percebe vagando por um local que ele nunca vira. Não só isso, o sujeito também não se recorda como chegara ali. Sua vontade imediata é de voltar à sua cidade, a antiga e maravilhosa Carcosa, pois tem assuntos urgentes a tratar.
Ele caminha, reclamando do vento, do silêncio e da estranheza daquelas terras áridas e pelo fato de não ter ninguém transitando por perto. Enquanto perambula, se recorda de estar doente, acamado com febre. Uma alucinação febril seria a única explicação possível para aquela jornada descabida.
Até que ele encontra um homem passando ao longe e vai buscar ajuda, só que, por mais que grite e chame, é ignorado. Percebe também que já está de noite, embora ele consiga enxergar com clareza. Suas suspeitas se confirmam quando ele encontra um objeto nada agradável:
Um vento súbito empurrou algumas folhas e galhos secos da face superior da pedra; vi as letras de uma inscrição em baixo-relevo e dobrei-me para lê-la. Deus do céu! O meu nome! O nome completo!… A data do meu nascimento!… A data da minha morte!
(…)
Então eu soube que estas eram as ruínas da famosa e antiga cidade de Carcosa.
É o Sexto Sentido, só que escrito mais de cem anos antes. Vou deixar o link para a história completa e traduzida na seção de referências.
Ambrose Pierce teve uma vida no mínimo inusitada. Além das ótimas contribuições à literatura e poesia, participou da Guerra Civil dos Estados Unidos, sendo um soldado do Exército da União, o lado vencedor, e também escreveu notas sociais ácidas e satirícas.
Sua coluna era tão “desagradável” no jornal, que teve de comprar uma arma para se defender das pessoas que criticava.
O fim de sua vida também é misterioso, viajou para o México sem dizer a ninguém o que iria fazer e desapareceu. Existem vários boatos sobre o local e as condições de sua morte, mas nenhuma confirmação.
Suas histórias influenciaram Robert W. Chambers, que deu continuidade à estranheza de uma forma ainda mais peculiar.
O Rei de Amarelo - Robert W. Chambers (1895)
É difícil explicar o que é o Rei de Amarelo.
Só se sabe que as pessoas enlouquecem por causa do Rei de Amarelo, como acontece nos primeiros 4 contos apresentados no livro de mesmo nome, que faz referências a um livro de mesmo nome, que tem um personagem de mesmo nome, integrante de uma peça de mesmo nome, que talvez seja um deus…
É a Weird Fiction em seu estado puro. Não importa o quanto eu fale aqui dessas histórias, a cada vez que você lê, fica com impressões diferentes dos fatos estranhos que ocorrem.
Chambers abre o livro com a Canção de Cassilda, um dos poucos trechos em que revela o conteúdo do livro/peça que enlouquece seus personagens:
Ao longo da costa as ondas de nuvens arrebentam,
Os sóis gêmeos afundam atrás do lago,
As sombras se alongam
Em Carcosa.
Estranha é a noite de pretas estrelas raiando
E luas estranhas rondando o céu
Mas o mais estranho ainda é
A extinta Carcosa.
Canções que as Híades deverão cantar,
Onde esvoaçam os farrapos do Rei,
Devem morrer inauditas na
sombria Carcosa.
Canção da minha alma, minha voz está morta;
Morre tu, não cantada, como lágrimas não derramadas
Secarão e morrerão na
perdida Carcosa.
É um poema confuso, mas isso faz parte da experiência.
Em seguida ele nos apresenta quatro histórias que, de alguma forma, envolvem o Rei de Amarelo e Carcosa (os outros contos do livro não tem nada a ver com nada, nem de Terror são):
1 - O Reparador de Reputações
Esse conto se passa em Nova Iorque, em 1920. O livro foi escrito em 1985, então Chambers projetou uma distopia causada pelo Rei de Amarelo.
O protagonista e narrador, Hildred Castaigne, é um homem que sofreu um acidente e ficou internado em um sanatório por quatro anos. Após sua recuperação, ele volta para a cidade e acaba se interessando pelo livro proibido, “O Rei de Amarelo”.
Proibido pelo fato de levar as pessoas à loucura. Àquela altura, vários países já tinham censurado tanto o livro quanto reproduções em forma de peça teatral.
Castaigne lê o primeiro ato e se dá conta do conteúdo perturbador do livro e sabe que enlouquecerá caso chegue ao segundo ato. Ele tenta jogá-lo no fogo da lareira, mas o livro cai aberto e ele lê algumas palavras do segundo ato.
Pronto…
O conto prossegue numa sucessão de diálogos bizarros, especialmente com o Sr. Wilde, o reparador de reputações.
Nesses diálogos revela-se a existência de um Império da América, do qual Castaigne seria o herdeiro. Mas antes, ele precisa se livrar do primo, que é um concorrente ao trono.
Não demora muito para se perceber que Castaigne é um narrador não confiável e que suas descrições e diálogos estão contaminados pela “loucura” causada pelo Rei de Amarelo.
Por exemplo, Castaigne usa uma coroa de ouro e diamantes à qual seu primo se refere como lixo, irritando-o sobremaneira.
No ápice de sua megalomania, Castaigne diz:
Todos os mil nomes desta lista receberam a marca amarela, a qual nenhum ser humano ousaria desconsiderar. A cidade, o estado e toda a terra estão prontos para se levantar e tremer frente à máscara pálida.
O momento chegou, o povo todo deve saber que o filho de Hastur retornou, e o mundo inteiro deve se curvar às estrelas pretas que estão no céu de Carcosa.
E por esses motivos, seu primo, Louis, deveria morrer.
É impossível reproduzir as sutilezas macabras deste conto de uma forma que faça sentido, então reforço que vale ir aos originais na seção de referência.
Um último ponto do “Reparador de Reputações” que merece destaque é a descrição de Castaigne sobre o conteúdo do livro “O Rei de Amarelo”:
Oro para que Deus amaldiçoe o escritor, como o escritor amaldiçoou o mundo com esta bela e estupenda criação, terrível em sua simplicidade, irresistível em sua verdade - um mundo que agora treme diante do Rei de Amarelo.
2- A Máscara
Esse é mais um conto inquietante, que relata a situação inusitada de 3 pessoas que formam uma espécie de triângulo amoroso. O narrador, Alec, é apaixonado pela esposa de seu melhor amigo, Genevieve e Boris, respectivamente.
No começo da história, que se passa em Paris, é revelado que Boris encontrou uma substância que transforma qualquer objeto ou ser vivo em mármore e com isso se torna um artista rico e renomado.
O conto não deixa claro se essa substância tem algo a ver com o Rei de Amarelo, mas Alec encontra uma edição do livro na biblioteca de Boris… suspeito…
Não demora muito para que os personagens comecem a enlouquecer sob o efeito do livro. Genevieve se declara apaixonada por Alec, do nada, e logo depois se joga na piscina de Boris e vira uma estátua de mármore. Boris se mata e deixa todo o seu legado para Alec.
Na última linha do conto, Genevieve recobra a consciência e ela e Alec vivem “felizes para sempre”.
Embora pareça um romance trágico, a sucessão de fatos que beneficiam Alec após ele ler o livro proibido é suspeita. No início do conto, há outro trecho da peça que corrobora esse entendimento mais sombrio quanto à sorte narrada por Alec:
Camilla: Você, senhor, deveria remover sua máscara.
Estranho: Sério?
Cassilda: Sim, já é o momento. Todos nós já tiramos nossos disfarces, menos você.
Estranho: eu não estou vestindo nenhuma máscara.
Camilla: (aterrorizada, para Cassilda.) Sem máscara? Sem Máscara!
O Rei de Amarelo - Ato 1, Cena 2.
O próprio Alec reconhece que ele se tornou um só com a máscara, “a Máscara de autoengano já não era mais uma máscara para mim, era uma parte de mim”.
Ele sonha com o Carcosa e com o Rei de Amarelo enquanto febril. Depois dessa noite, os fatos começam a beneficiá-lo. Tudo muito suspeito.
3 - A Corte do Dragão
Esse conto é curtinho e uma alusão a “Um Habitante de Carcosa” de Ambrose Bierce. Não é revelado quem narra o texto (para facilitar, vou chamá-lo de narrador), mas essa pessoa está numa igreja, em Paris, tentando se curar das várias noites mal dormidas após ler o Rei de Amarelo.
O único problema é o organista da igreja, que insiste em tocar uma música pesada e agoniante antes do sermão começar.
Mesmo após a música se encerrar e o sermão começar, o organista continua aparecendo pela igreja de maneira errática e com os olhos cheios de ódio, assombrando o pobre narrador.
Cansado dessa tensão, o narrador sai da Igreja e toma o rumo da Corte do Dragão, onde mora. Mas o organista lhe persegue pela rua de forma implacável e consegue realizar uma emboscada perto da porta de casa.
Depois de ser capturado, o narrador acorda novamente na igreja, confuso. De repente, as pessoas somem, assim como as paredes e demais objetos, dando lugar a um ambiente estranho com estrelas pretas no céu.
O narrador percebe que está em Carcosa, provavelmente morto, e o Rei de Amarelo sussurra uma passagem bíblica em seu ouvido: “horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo”.
4 - O Símbolo Amarelo
Sr. Scott é um artista, provavelmente de Nova Iorque, certamente depois de 1920, que tem passado a maior parte dos seus dias em casa, pintando gravuras de sua modelo Tessie. Numa certa manhã ele olha pela janela do apartamento e toma um susto ao ver o segurança da igreja. O sujeito tem a pele flácida, fazendo-o se lembrar de uma minhoca de caixão.
Tessie depois revela que teve um sonho com a mesma pessoa. Ele era o motorista de um carro fúnebre e o caixão que carregava era o de Scott. O artista se recorda de ter tido o mesmo sonho, mas da perspectiva de dentro do caixão (glup).
Então Tessie revela mais um segredo, na verdade, um presente dela para Scott. Uma pedra onyx com uma gravura amarela, que os dois não conseguem reconhecer. Possivelmente um dos objetos distribuídos pelo Sr. Wilde, o reparador de reputações do primeiro conto.
Logo em seguida, Scott descobre uma edição, com capa de couro de serpente, do Rei de Amarelo em sua biblioteca.
O que é estranho, pois ele havia jurado nunca chegar perto do livro depois do que acontecera com seu bom amigo Castaigne (o personagem principal de “O Reparador de Reputações”).
Scott come mosca com o livro e Tessie o pega para ler em segredo. Ele acaba lendo também e os dois passam horas discutindo seu conteúdo:
Oh! A maldade, a maldição de uma alma que consegue fascinar e paralisar criaturas humanas com tais palavras, - palavras entendidas tanto por ignorantes quanto sábios, palavras que são mais preciosas do que joias, mais suaves do que música, mais terríveis do que a morte!
Não demora muito para que o sujeito de pele flácida apareça para matá-los no apartamento, investido como um avatar do Rei de Amarelo. Scott reconhece seu abraço mortal como sendo os farrapos amarelos do rei o convidando para Carcosa.
As palavras que enlouquecem
Chambers nunca mais escreveu nada relacionado ao Rei de Amarelo, mas vários autores que vieram depois (em especial os herdeiros de Lovecraft) se inspiraram na sua forma aberta de construir seres e conceitos malignos. Não há como realmente entender a influência de Carcosa ou o que é o Rei de Amarelo e isso é ótimo.
Mas muitos veem (e eu acompanho essa ideia) de que Chambers traçou um paralelo entre os efeitos do livro proibido e o poder da escrita no mundo real.
Ele acabou criando um artefato que confirma sua própria tese, afinal, ter gente em 2023 escrevendo sobre o legado de umas 50p. que ele escreveu em 1985 é um conceito um tanto inusitado, se você parar para refletir.
Ao mesmo tempo, pode ser entendida como uma crítica ao poder que as palavras possuem quando mal utilizadas. Acho curioso que ele tenha escolhido resgatar elementos de um conto de um escritor, Ambrose Bierce, que foi tão odiado por suas sátiras.
Muitas vezes a capacidade de um bom escritor é utilizada para mascarar reflexões indesejadas sobre determinados assuntos. Discursos e cartas tão bonitos que mexem com suas emoções, te atraem para o que está sendo dito, enquanto o que não está sendo dito passa despercebido.
Praticamente qualquer pessoa já foi exposta a uma mensagem que fura as barreiras de seu senso crítico e lhe acerta bem no centro de seu viés de confirmação. Depois que isso acontece, é difícil voltar atrás, assim como foi difícil para os personagens que leram o livro proibido se desfazerem da máscara pálida.
É uma mensagem que perdura. Cuidado com o que escreve. Cuidado com o que lê. Você pode acabar em Carcosa!
Recomendações e Fontes
Seguem alguns links que me ajudaram a fechar os detalhes desta edição da universos sombrios, ou coisas que esbarrei por aí e gostei:
Um Habitante de Carcosa - link para o conto traduzido pela USP
The King in Yellow - link para o livro no Projeto Gutenberg, em inglês
O Rei de Amarelo - esse livro físico, da Editora Avec, contém as histórias de Bierce e Chambers, traduzidas, e outras histórias de Terror.
The King in Yellow Fandom - uma wiki em que praticamente TUDO sobre o Rei de Amarelo e Carcosa
Artigo - Revista Galileu - um artigo que fala sobre Carcosa
Arkham Horror Card Game - Caminho para Carcosa - essa é uma expansão baseada em Carcosa para o jogo de tabuleiro “Arkham Horror”. Eu nunca joguei, mas parece ser incrível.
Conheço pouco Weird Fiction, adorei! Tenho curiosidade em conhecer China Miéville. Chego lá, rs!
Nossa, que maravilha de post. Até salvei aqui para depois ler de novo no computador já procurando os livros para ler. Amo True Detective, mas não conheço a obra donde veio a referência a Carcosa. Já vi que tua news é como a da Thaís Nunes, que eu leio tomando notas e com a página da livraria aberta.