#7 - O Chamadoverso
Reflexões sobre a Raiva Feminina e do Horror japonês "traduzido" por americanos
Desde criança que eu sou muito fã de produções japonesas, especialmente desenhos e jogos.
Produções mais conhecidas aqui no Brasil, como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, Sonic, Final Fantasy, Pokémon e Zelda; e outras nem tanto, como Chrono Trigger, Shenmue, Wonderboy e Samurai Pizza Cats.
Isso nunca mudou, hoje em dia meu jogo favorito é Elden Ring, filme favorito é A Viagem de Chihiro e desenho favorito também, que é o Mushi-Shi (vale assinar 1 mês do Crunchy Roll só para assistir essa obra prima de histórias curtas).
Mas uma coisa que demorou a cair a ficha foi que várias dessas produções, incluindo aí na lista Silent Hill e Resident Evil, eram feitas no Japão, mas se passavam em contextos ocidentais, em especial releituras da Europa Medieval.
Certamente essas inspirações vêm do período, do pós Segunda Guerra, de forte influência da cultura ocidental sobre o país. No âmbito do cinema, esse processo ganhou até um nome: yōkō hōtei, uma expressão que significava que o mercado de filmes no Japão via uma representatividade de, mais ou menos, 75% de filmes americanos ou europeus (yōga) e 25% de filmes nacionais (hōga).
É estranho e pesaroso pensar numa cultura riquíssima e milenar sendo invadida por influências externas, mas a consequência não foi um apagamento (como lamentavelmente aconteceu com tantas outras culturas), mas uma adaptação.
O mais interessante é que essas adaptações nunca parecem ser misturas malfeitas ou cópias sem sentido, mas verdadeiras criações híbridas e por vezes incomparáveis. Eu não acho que os americanos irão fazer uma cidadezinha de terror mais perturbadora que Silent Hill, ou que os europeus vão criar um reino fantástico medieval mais marcante que Hyrule, de Zelda, ou Lordran, de Dark Souls.
E claro, do Japão vem uma abordagem do Terror muito singular e impactante e, já que é outubro, vou falar sobre uma pérola desse contexto de ctrl+c e ctrl+v, O Chamado.
Aviso: esta edição possui passagens sobre violência sexual.
Trilha Sonora
Martin Tillman e Hans Zimmer criaram uma trilha sonora de mistério/horror atemporal (e ótima para estudar/escrever):
Sadako/Samara
Mesmo quem não assistiu a versão americana do filme conhece a antagonista Samara, a aparição que sai pela TV.
Infelizmente eu acho que ela também inspirou uma geração inteira de correntes irritantes por e-mail, MSN e whatsapp…
Apesar dessa aura quase tola de “aparição aterrorizante” que circunda a Samara, a versão japonesa, Sadako, possui uma mensagem poderosa, arrisco até dizer que icônica, de Raiva Feminina.
A história de O Chamado, em todas as versões, segue a mesma lógica de uma pessoa esbarrando numa história estranha de jovens que morreram ao mesmo tempo, em locais distintos e de causas naturais, 7 dias após assistirem juntos um VHS amaldiçoado.
Obviamente, quem está investigando acaba assistindo a fita também.
Isso dá início a um processo de investigação, para mim um dos pontos fortes dessa história, que leva até a família de Sadako/Samara.
Apesar dessa estrutura básica ser mantida, cada versão possui suas nuances que impactam bastante o tom e o propósito dos personagens.
Quem criou essa história foi o escritor japonês Koji Suzuki, seguindo uma temática recorrente, desde o século XVII, de um estilo de contos japoneses de Terror conhecidos como Kaidan, que contam histórias sobre espíritos de mulheres que buscam vingança contra os homens que as mataram, direta ou indiretamente.
O livro
É difícil dizer se Koji Suzuki é um gênio ou um imbecil, mas não tenho dúvidas de que ele é um escritor talentoso. Sua escrita sai com um tom similar ao do Robert Chambers, que escreveu o Rei de Amarelo.
O ritmo de suspense e os detalhes da investigação sobre o VHS são brilhantes, é do tipo de livro que você começa de manhã e termina de noite.
Mas ele fez algumas inclusões no livro em que fica difícil ter certeza se ele só fez isso para dar uma roupagem de estranheza à história, ou se ele realmente queria demarcar uma mensagem mais sutil quanto aos problemas da sociedade machista japonesa.
Não sei se existe alguma entrevista em japonês, mas não consegui encontrar nenhuma fala dele sobre os temas abordados no livro.
Em ambos os filmes, quem investiga o VHS é uma jornalista divorciada, que cria o filho sozinha, acompanhada do ex-marido. Já no livro, nós acompanhamos a dupla de protagonistas mais asquerosa o possível, o repórter Kazuyuki Asakawa e o professor Ryūji Takayama.
O que dizer sobre esses dois caras?
Asakawa e Takayama eram amigos de escola, mas Asakawa decidiu se afastar após Takayama começar a se gabar de ter violentado várias mulheres, então era alguém que ele não queria por perto de sua mulher e filha. Mas quando o cerco da maldição apertou, foi exatamente esse amigo que ele decidiu procurar…
Asakawa é um ser humano deplorável, além de nunca ter denunciado Takayama, ele trata a esposa como se ela fosse um saco de lixo. Em determinado momento da trama, Asakawa se irrita com a esposa e ordena que ela pegue a filha deles e vá passar uns dias na casa do pai, pois, segundo ele, essa é a forma mais fácil de fazer uma mulher calar a boca.
Acho que em qualquer condição, esse seria um pensamento torpe, mas veja que no contexto da história, a mulher e a filha tinham acabado de assistir ao mesmo VHS amaldiçoado que ele, ou seja, a expectativa é de que morressem em 7 dias a partir dali…
É muito difícil criar qualquer simpatia com qualquer um dos dois e você acaba desejando que a Sadako os exploda no fim.
Além de toda a história ser vista através dos olhos de Asakawa, o final dos personagens é ambíguo, o que cria uma camada de dúvida se Koji Suzuki queria denunciá-los como “heróis” cretinos que a sociedade japonesa dos anos 90 idolatrava, ou se considera as atitudes deles abonáveis.
Takayama recebe uma “redenção” no final do livro, quando uma outra personagem faz uma revelação para Asakawa que deixa subentendido que Takayama era gay, o que para Asakawa invalidaria a possibilidade de ele ter abusado de qualquer mulher.
Sinceramente não sei o que dizer sobre essa passagem. O que levou o escritor a tomar a decisão de incluir essas situações na história, uma aleatoriedade com contornos ofensivos, ou uma crítica social ácida?
A não ser que eu descubra alguém que entenda japonês e consiga encontrar uma entrevista do sujeito, acho que nunca saberei.
Mas as decisões peculiares não param por aí.
A Sadako do livro é bem diferente das versões trazidas para as telas do cinema.
Em outra edição da universos sombrios, comentei que a Sadako de Koji Suzuki era uma combinação dos poderes paranormais herdados do pai (uma entidade que mora no mar da ilha de Oshima) com o vírus do Sarampo. Até ai, tudo bem, é uma construção bem interessante de horror sobrenatural com horror biológico, mas não é só isso…
Sadako é estuprada por um médico que está contaminado com sarampo e que alega, quando Asakawa e Takayama quase o matam (nem esses dois passaram pano para este cretino), que ele estava delirando de febre no dia em que conheceu a mulher.
Acontece que durante o ato, o médico descobre que Sadako é intersexo, tendo tanto uma vulva quanto um saco escrotal. Para o médico, isso o transformou num homossexual. Tomado de fúria, ele mata Sadako e a joga dentro de um poço.
Koji Suzuki tentou transformar a fúria de Sadako num grito de raiva queer? Ou só colocou isso como um floreio ofensivo na história?
Eu e mais centenas de leitores americanos atônitos no Goodreads jamais saberemos a resposta para essa pergunta.
Algo que é interessante é que os dois investigadores, após descobrirem o contexto da morte de Sadako, deixam de vê-la como uma vilã perversa para a entenderem como uma antagonista com uma mensagem furiosa, na qual os dois deram azar de se verem apanhados (não que eu tenha sentido pena).
A obra de Koji Suzuki é complexa, talvez muito mais por sua origem japonesa do que pela sagacidade do escritor, e confusa, sendo que a única interpretação válida é a que você vai ter ao final do livro, caso decida ler. Independente disso, a trama é muito apresentada e a prosa é de leitura fácil, Weird Fiction na veia.
Os filmes
O livro não vendia muito bem, até que foram lançados dois excelentes filmes, Ringu (1998), a versão japonesa:
E The Ring (2002), a versão americana:
Antes de comentar os filmes, é bom deixar claro que não entendo nada de cinema, é só pitaco de leigo mesmo.
Graças à Amaterasu que o ótimo diretor de cinema Hideo Nakata decidiu remover os lamentáveis Asakawa e Takayama do livro, substituindo-os pela jornalista Reiko Asakawa e uma outra versão de Ryuji Takayama, seu ex-marido médium, um cretino e péssimo pai, mas que pelo menos não se gaba de ter cometido violências sexuais.
Seguindo a mesma linha, Gore Verbinski trouxe os personagens Rachel e Noah, que são versões americanizadas dos protagonistas japoneses.
Naturalmente, existem diferenças entre Sadako e Samara (bem relevantes). Diferente do livro, ambas essas caracterizações não incluem menções sobre a personagem ser intersexo e o sarampo não tem nenhuma participação na trama.
No filme japonês que surgiu a cena icônica (e provavelmente o motivo para os americanos terem decidido adaptá-lo) da Sadako saindo da televisão. É uma imagem muito forte, que não está no livro. Ponto para a genialidade de Hideo Nakata.
Ambos os filmes conseguem reproduzir com perfeição o clima de investigação. Na verdade, essa história é muito mais thriller do que terror, apesar do status de clássicos modernos de terror.
A versão japonesa segue uma linha mais especulativa e fantasiosa. Ryuji Takayama tem poderes mediúnicos e revela passagens da vida de Sadako através de flashbacks bem confusos, mas interessantes.
A Reiko Asakawa se desespera várias vezes ao longo do filme, o que é bem irritante.
Além disso, tem umas coisas que surgem meio que do nada, mas que funcionam no final.
Já a versão americana é muito mais direta ao ponto e sem floreios. Em termos de ritmo e clareza, é uma versão superior à japonesa.
Mas já na caracterização e história de Samara, a versão americana desliza feio. Apesar de ter sido uma produção milionária, parece que ninguém procurou saber, ou desprezaram, do que se tratavam as ghost stories, Kaidans.
A Fúria de Sadako
As intenções de criação de Koji Suzuki podem ser dúbias, mas o VHS da Sadako é um poderoso grito de fúria feminina (female rage).
O conteúdo do VHS, em todas as versões, mostra trechos de sua vida atormentada e de seus últimos segundos de vida, antes de ser assassinada.
Ela é uma mulher poderosa, que tem uma mensagem a passar e que não hesita em usar seus poderes para transmiti-la o mais longe o possível, doa a quem doer.
Em todos os filmes, os protagonistas pensam que ela quer ser resgatada, então encontram o poço onde seu corpo foi atirado e a resgatam daquele lugar sombrio.
Mas Sadako não quer ser salva, ela quer que a porr* da história dela se espalhe pelo mundo inteiro!
A versão americana, embora consiga criar um clima de investigação mais intenso que a versão japonesa, falha miseravelmente nessa caracterização da antagonista e de sua mensagem.
Naquela, Samara é um espírito ruim desde o início da vida, fazendo de tudo para atormentar a vida da mãe e do pai.
No final, o filho de Rachel diz:
“Você ajudou a Samara? Você não podia ter feito isso! Ela é do mau, ela nunca dorme!”
Um grito de raiva feminina (e queer no livro), transforma-se num mero dispositivo através do qual o espírito maligno consegue matar suas vítimas.
Não condeno The Ring (2002). Ainda o considero uma das pérolas do horror americano, que deve ser assistida. É ótimo, divertido e aterrorizante, mas Ringu (1998), com todos os seus problemas, constrói a versão definitiva de Sadako: um espírito que espalha sua fúria através de uma mensagem aterrorizante e fatal. Não vai passar pra frente? Ela vai sair da TV e...
The Ring 2 (2005) também é interessante, mas tem umas decisões bem bizarras. Não recomendo nenhum outro filme do Chamadoverso, nem mesmo Ring (1995) que segue fielmente a estrutura do livro. Pra dizer a verdade, parece que estão tentando destruir a ideia da Sadako/Samara com filmes ridículos.
Vou deixar um link para um artigo que discute em mais detalhes as questões patriarcais observadas em ambos os filmes. A autora argumenta que ambos os trabalhos são produtos de uma sociedade machista, assim como as kaidans.
Para ela, o pacto patriarcal só é rompido quando um homem machuca ou mata uma mulher, só então que a vingança espectral se torna legítima. O caso de Sadako é um pouco diferente, pois ela usa seus poderes ao longo da vida em outras situações de opressão masculina.
Divirtam-se no Halloween!
Recomendações e Fontes
Seguem alguns links que me ajudaram a fechar os detalhes desta edição da universos sombrios, ou coisas que esbarrei por aí e gostei: