Fazia tempo que uma história clássica me deixava tão impactado. Estou falando da mitologia relatada neste livro aqui:
Não é surpresa para ninguém que a mitologia grega esconde histórias tenebrosas e atitudes desumanas vindas dos deuses. Humanos sofrem com os caprichos de Zeus, Poseidon ou Hera.
Eu me achava um “entendido” de mitologia grega, não ao nível do meu camarada Rod Zandonadi, mas um bom conhecedor, tendo lido vários livros sobre mitologia, além de ter tido contato com as releituras (GOW, CdZ, Percy Jackson, Tróia, a Odisséia e por aí vai).
Conhecia por alto o mito de Teseu e o labirinto do Minotauro de Creta, a criatura praticamente pertence à cultura pop. Mas NUNCA tinha escutado falar dos feitos “colaterais” de Teseu, especialmente de suas relações com Ariadne e Fedra.
Apagamento seletivo? Bem provável…
Esta edição trará spoilers da história de Ariadne, Fedra e Teseu. Acho que 3.000 anos é tempo o suficiente para considerar que esses spoilers não são realmente spoilers. No entanto, se você não conhece a relação entre esses personagens, recomendo FORTEMENTE o livro da Jennifer Saint.
Teseu - Herói e Rei de Atenas
Teseu não é um Deus entediado no Olimpo, que desce à Terra para se divertir com os mortais sem se preocupar com as consequências.
Ele é um Herói Ateniense, campeão dos oprimidos, destruidor de monstros e vilões e uma espécie de sucessor de Hércules.
Algum tempo após ser reconhecido por Aegeus como sendo seu filho bastardo, mas herdeiro de Atenas, ele é convocado a proteger seu país contra a ameaça monstruosa perpetrada pelo Rei Minos de Creta.
É aqui que a jornada de Teseu cruza com Ariadne e Fedra, filhas de Minos e irmãs da criatura presa no labirinto, Androgeu, o Minotauro.
Como o Minotauro foi criado? Apenas mais um dia comum na mitologia grega. Irritado com Minos, Poseidon resolve enlouquecer a Rainha Pasífae fazendo-a sentir uma luxúria incontrolável por um touro. Ela pede ajuda a Dédalo, um inventor escravizado por Minos, para criar uma máquina que a permitisse ter relações sexuais com o touro. Desse ato surge Androgeu.
Acontece que o plano de Poseidon dá errado e Minos começa a utilizar Androgeu como uma arma. Após vencer uma batalha contra Atenas, o Rei de Creta assina um acordo de paz em que os atenienses são obrigados a enviar dez jovens, todos os anos, para servirem de alimento para o Minotauro.
Obviamente, Teseu não pode permitir que essa situação se perpetue.
A Destruição do Minotauro
Teseu pede para ser enviado junto com os outros nove tributos de Atenas. Ao ser apresentado em Creta, ele chama a atenção das princesas Ariadne e Fedra por seu porte atlético e beleza olimpiana.
As duas resolvem ajudá-lo a deter a fera que aterroriza não só os atenienses, como também o povo de Creta. Um típico ato de rebeldia adolescente, só que nos padrões da mitologia grega.
Ariadne se encontra com Teseu na madrugada e logo se apaixona por ele, ao ouvir sobre seus feitos históricos (obviamente ele não revela seus pontos baixos). Os dois formam então um plano infalível para que o ateniense seja bem-sucedido no labirinto. O único problema é que Ariadne seria descoberta como traidora a partir dali
Ao chegar ao labirinto no dia seguinte, Teseu recebe de Ariadne sua arma (em algumas versões um porrete, em outras uma espada) e um novelo amarrado à porta de uma das saídas para que ele não se perca.
A criatura é feroz, mas não é páreo para o herói e logo o ateniense emerge vitorioso.
Teseu e Ariadne escapam de Creta num navio com direção a Atenas.
Mas antes, param em outro lugar…
A Ilha de Naxos e Fedra
Tudo parece estar indo muito bem para os destruidores do minotauro. Ariadne e Teseu têm uma noite eufórica juntos e promessas de um casamento surgem.
Mas, na manhã seguinte, Ariadne acorda e se vê sozinha na deserta Ilha de Naxos.
Teseu a abandona para morrer de sede e fome.
Na versão de Jennifer Saint, não parece existir um motivo para tal ato. O herói faz o que ele pode e não existe nada que o impeça de abandonar Ariadne, uma mulher que traiu seu próprio reino. Ele não precisa se justificar, afinal, ele destruiu o minotauro e salvou os filhos de Atenas de um destino cruel. É dono de seu próprio destino.
O melhor? Algum tempo depois Teseu resolve se casar com Fedra, irmã de Ariadne…
Heróis de verdade ou de mentira?
Sinto que faltam mais Teseus na literatura fantástica. Depois do cansaço com os heróis bonzinhos e puritanos, surgiram os heróis com passado triste e sombrio, inconsoláveis após a morte da esposa pelas mãos de um vilão.
Alguns são até bem crueis e amorais, como o debochado Deadpool, mas existem algumas linhas que não podem ser cruzadas para não afastar o público.
Eu entendo, também não quero passar 2 horas de um filme, 500 páginas de um livro, 6 horas de um jogo torcendo por um herói que se revela um assassino, cretino e misógino. Só que, ao mesmo tempo, a história de Teseu é muito factível e atual.
Teseu é metade matador de monstros, metade monstro. Essa é a sua natureza.
Ainda assim, é considerado como parte do mito fundador de Atenas e sua história não pode ser esquecida ou apagada só para proteger os heróis do nosso tempo.
Já consumi todo tipo de literatura fantástica, mas só consigo me lembrar de um único Teseu:
Kennit Ludluck - o Teseu de Robin Hobb
Quando conheci os livros da Robin Hobb eu li somente 17 livros em 6 meses, esse é o poder dessa escritora que não é tão conhecida como deveria.
Esses 17 livros fazem parte de uma mesma linha do tempo e diversos personagens convergem, numa espécie de multiverso dentro da mesma dimensão. A segunda trilogia, Liveship Traders, composta por três calhamaços de puro suco fantástico em alto mar, traz um dos personagens que mais me marcou: Kennit Ludluck.
Esse camarada é um capitão pirata, uma espécie de Jack Sparrow para quem vê de fora. Mas os leitores sabem muito bem quem ele é: mentiroso, hipócrita, sem escrúpulos, confuso e inseguro. Dono de um passado triste e misterioso. Suas habilidades? Saber mentir e manipular.
Kennit foi me conquistando ao longo das três mil e tantas páginas e eu me esqueci que a autora havia deixado claro quem ele era desde o início. Assim como os outros personagens que ele enganou, eu fui enganado.
Mas não exatamente.
As ações que ele toma ao final da trilogia, que o tornam inaceitável independentemente de seu passado doloroso, não fugiram aos traços de personalidade que foram delineados nas primeiras páginas em que aparecera.
Já me perdi como andam as traduções dos livros da Robin Hobb, mas se posso dar um conselho, este é:
Leiam Robin Hobb. Leiam Jennifer Saint. Especialmente se você for um homem escrevendo Fantasia.
Vocês conhecem mais personagens como esses dois? Perpetradores de atos extremamente heroicos e de atos extremamente cretinos e inaceitáveis? Quero mais livros com esse tipo inaceitável de ser humano.
Enxofre: a cultura metaleira do subúrbio carioca
Fui agraciado de receber o livro Enxofre, de Marcos Aquino, depois de ter alguns contatos com a Valéria, da
aqui no Substack e no Instagram.O livro traz um ritmo poético e reflexões filosóficas que por si só já valem a leitura, mas o que mais me atraiu foi o cenário sombrio (obviamente).
Em Enxofre acompanhamos Felipe, metaleiro, morador do bairro Piedade, uma figura carioca que não seria tão difícil de encontrar no subúrbio carioca ao final dos anos 90. Retrata uma cultura underground muito específica de um período e local da gigantesca cidade do Rio de Janeiro.
Através da minha família, tive algum contato, quando criança, com essa cultura metaleira, apesar de nunca ter feito parte dela. Por isso, Enxofre me capturou por apresentar detalhes de um universo que eu conheci, mas só um pouquinho. Voltei a ser uma criança impressionada por um cotidiano tão diferente do meu.
Não sei existe ou existirá outro livro com o propósito de retratar esse cenário, recomendo demais o livro do Marcos.
Quer um gostinho dessa cena underground do Rio de Janeiro? Seguem as descrições que mais me cativaram:
Andando na direção de casa, pela Rua Teixeira de Pinho, até virar a esquina para a Bento Lima, aconteceu que me veio à cabeça o quanto de expectativas falidas depositava naquelas ruas. No desejo de ver surgir uma Thaiane entre os passantes, só me deparava com os pagodeiros de sempre, com suas camisetas sem manga, bermudões floridos e chinelos de dedo casuais, muito despojados, como que prontos para subir na próxima condução ruma à praia (…) Em atmosfera assim, se avistasse uma fã de música pesada cruzar comigo, talvez viesse a acreditar se tratar de uma miragem, talvez ficasse travado e abaixasse a cabeça, mas continuava a procurar.
No nosso caso, corríamos em busca da tal fita, cogitando onde seria mais provável obtê-la, talvez com o Seu Guilherme, num mini bazar cujos artigos iam de álbuns fotográficos e botões e outras miudezas, uma lojinha escura e delgada que se escondia na fissura entre uma funerária e uma quitanda, logo atrás da banca do jogo do bicho.
Comecei o ano terminando essas duas leituras interessantíssimas e vocês? Já tenho ideias para as próximas edições, mas se tiverem recomendações, sou todo ouvidos!
Recomendações e Fontes
Seguem alguns links que me ajudaram a fechar os detalhes desta edição da universos sombrios, ou coisas que esbarrei por aí e gostei:
Artigo sobre o Mito de Teseu (em Inglês) - Theseus Slew the Minotaur, But Was He a Hero or a Villain?
não é o tipo de personagem que você está procurando, mas... eu ainda não superei a leitura de O segredo das mulheres de Pat Baker, em que foca em Briseida, de troiana a escrava sexual de Aquiles. É o tipo de releitura com a perspectiva das mulheres em meio a guerras e conquistas de homens.
tbm sinto que esse não é um tipo comum de personagem (o do tipo que encarna o pior da humanidade). inclusive, as vezes é o que falta na história. em O segredo de Medusa, Perseu é quase um menino bobo que foi usado como peão; enquanto poderia ter mostrado que a cabeça de Medusa nas mãos de Perseu foi quando ele se tornou poderoso e etc.
Gostei dessa dica, lembro bem do personagem da Briseida, mas sempre achei que foi pouco explorado.
Acho até que tem um clichê forte de vilões super vilanescos e que chutam cachorros, mas esses homens, donos de atos heroicos, mas que também cometem atrocidades, é bem raro mesmo.
Com certeza vou conferir esse livro do Pat Baker